POR MAURÍCIO PESTANA
Pouco lembrado, o Estatuto da Igualdade Racial completou um ano de existência. Matéria das mais polêmicas, o texto tramitou pelo Congresso por uma década, sobreviveu a dois governos, provocou amplos debates na Câmara, Senado e sociedade brasileira, afinal, era o primeiro documento pós-Lei Áurea tratando diretamente de direitos e reparação para descendentes dos escravizados que, durante 380 anos, deram suas vidas na construção das riquezas dessa nação.
Nesse tempo, o estatuto teve três sobrevidas: a primeira quando setores conservadores do Congresso, comungados com áreas ruralistas que temiam pela regulamentação de terras quilombolas, obtiveram apoio de setores midiáticos tementes dos avanços que as cotas poderiam trazer para negros, sobretudo, na televisão e publicidade. Como previa o texto original, se aliaram também a setores da educação que, por sua vez, temiam perda de espaço para negros no mundo acadêmico, até prejuízos financeiros, pois, a realidade mostra que o negro é parcela expressiva dos estudantes de universidades privadas no país. Nesse contexto, cotas em universidades públicas, poderiam também causar algum prejuízo para essa área da educação. Diante da ameaça, a união maléfica desses setores foi estratégica e quase abortou o projeto no período que ele tramitava na Câmara, a ponto do autor, o senador Paulo Paim declarar em entrevista exclusiva à RAÇA BRASIL: "As elites deste país não querem a ascensão da comunidade negra brasileira, por isso, estão unidas contra o estatuto da igualdade racial."
A segunda agoniação do estatuto aconteceu às vésperas de sua aprovação, pois, se não bastasse intensa pressão dessas elites, o não consenso entre os diversos movimentos negros à cerca das mudanças realizadas no texto original quase culminou com o fi m do estatuto.
"TEM LEI QUE PEGA E TEM LEI QUE NÃO PEGA... É COMO SE AQUELES QUE NÃO O MATARAM ANTES DO SEU NASCIMENTO TENTASSEM FAZÊ LO AGORA COM O SILÊNCIO, A INVISIBILIDADE E O DESCRÉDITO..."
Hoje, independentemente das modificações negociadas para que pudesse ser aprovado, o estatuto sobrevive e passa pelo terceiro e mais difícil teste, que é a implementação de todas as diretrizes nele apontado. Muitas dependem da regulamentação no Congresso que tanto o rejeitou. Passa também pela mais difícil prova em que uma lei é submetida no país, o famoso "tem lei que pega e tem lei que não pega" e, nesse quesito, tem recebido seus mais fortes golpes, que são o silêncio e o descrédito. É só comparar o alarde realizado nos festejos do primeiro ano de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente e no silêncio e na invisibilidade no qual o Estatuto da Igualdade Racial recebeu em seu primeiro aniversário. É como se aqueles que não o mataram antes do seu nascimento tentassem fazê-lo agora com o silêncio, a invisibilidade e o descrédito.
Cabe à sociedade civil uma ampla aliança com setores progressistas do Congresso e os operadores de Direito no Brasil para que os avanços descritos na lei se tornem realidade num país onde os índices de desigualdade entre negros e brancos são dos mais alarmantes do planeta em áreas como saúde, (onde a expectativa de vida de negro é menor que a de um branco), educação (onde não alcançamos nem 20% dos bancos escolares nas universidades), emprego (onde recebemos, em média, a metade do salário de um trabalhador branco), segurança pública (onde, para cada quatro mortes de jovens, três são de negros). A efetivação de algumas normas estabelecidas no Estatuto da Igualdade Racial será uma ferramenta fundamental e indispensável para o enfrentamento desses e de outros graves problemas que os afrodescendentes ainda sofrem, 123 anos após a pseuda libertação dos escravos.